Evaporação do Tráfego: Quando os carros “simplesmente somem”

Com o crescimento das cidades, os deslocamentos tendem a ser cada vez mais longos, o que leva muitas pessoas a fazer o uso de veículos motorizados. Embora cômodo, os carros acabam sendo os principais causadores de problemas de trânsito, uma vez que, quando utilizados em massa, demandam um espaço que as cidades já não conseguem prover.

Historicamente, as medidas que eram adotadas para sanar esta situação se resumiam à criação de novas infraestruturas viárias, tendo como exemplos as construções de vias elevadas e de corredores expressos. Tais soluções, no entanto, já não são mais recomendadas pelos profissionais de mobilidade por dois motivos:

  • O espaço é um recurso finito e, principalmente, oneroso. Com os problemas de trânsito ocorrendo majoritariamente nas regiões centrais das cidades, a construção dessas infraestruturas tem sido cada vez mais inviável, haja vista a necessidade de desapropriações e demolições.
  • Além de não ser barata, a criação de novos espaços para veículos também não é duradoura. Embora em um primeiro momento desafogue o trânsito, a inserção de novas vias acaba funcionando como um incentivo para que mais pessoas migrem para este modal, levando à piora dos níveis de serviço em um curto período de tempo.

Uma vez constatada que a criação de infraestruturas não gerará os resultados esperados, a Teoria da Evaporação do Tráfego tenta apresentar, pela lógica inversa, que pode ser a principal resposta para os desafios urbanos. Inicialmente, ela defende que a redução dos espaços para circulação de carros acaba gerando uma redução do tráfego, não apenas nas vias modificadas, mas também em toda a sua redondeza.

Mesmo sendo explorada há mais de 20 anos, esta ideia ainda não é muito aceita devido à desconfiança de que, reduzindo o número de faixas de uma via expressa, por exemplo, criaria-se um cenário caótico, tanto pela saturação nas faixas restantes, quanto pelo aumento de fluxo de veículos nas vias adjacentes.

O estudo “Disappearing traffic? The story so far”, desenvolvido em conjunto pela Universidade de Southampton e pelo Colégio Universitário de Londres, rebate esta suspeita ao analisar diversos eventos nos quais vias principais foram interrompidas. Independentemente da causa dessas alterações, que variaram da realocação do espaço viário até interdições devido a desastres naturais, percebeu-se que o comportamento do trânsito era, frequentemente, muito menos alarmante do que se esperava.

Mas como o tráfego é “evaporado”?

Para explicar esse fenômeno, o estudo destaca três pontos principais, que tendem a atuar concomitantemente:

A alteração nos trajetos

O comportamento dos usuários é muito mais complexo do que os modelos de tráfego conseguem estimar, assim, em meio ao bloqueio de uma via principal, cada pessoa tem uma resposta diferente para a situação. Dependendo das origens e destinos de cada viagem, rotas secundárias podem vir a ser mais vantajosas para os usuários, que deixam de trafegar pela região onde ocorreu a alteração.

Ainda que as vias alternativas passem a receber mais veículos, os acréscimos tendem a ser relativamente baixos, de modo que, caso ocorra a demanda por medidas corretivas, estas serão muito menos invasivas ao tecido urbano, podendo ser resumidas a melhorias na sinalização viária e no ordenamento do tráfego.

Isso é bastante exemplificado com o caso de Seoul, na Coreia do Sul, na qual uma importante via elevada da cidade foi demolida para dar lugar ao destamponamento de um rio urbano. O antigo tráfego da via expressa se dispersou pelas demais vias da cidade, ao passo que as margens do Cheonggyecheon puderam abrigar um parque linear que, hoje, é um dos maiores exemplos de revitalização urbana.

Com a sua demolição, a antiga via expressa de Seoul foi transformada em um parque linear, revitalizando todo o centro da cidade sem gerar prejuízos na mobilidade urbana. Fonte: Adaptado de Lee (2006) e Koreapost (2016)

A alteração nas rotinas

Outro ponto importante elencado pelo estudo das universidades inglesas é o fato de que as grandes remodelações do sistema viário culminaram na flexibilização das rotinas urbanas, contemplando a ampliação dos horários de funcionamento, a criação de novos turnos de trabalho e uma maior alternância entre jornadas presenciais e à distância.

Tais alterações trazem um impacto extremamente positivo à mobilidade urbana, pois permitem uma redistribuição do volume de tráfego para os horários menos movimentados. Nesse fenômeno de “diluição” das demandas, o espaço viário existente consegue ser potencializado, não só por conseguir atender a um volume de tráfego mais reduzido durante os horários de pico, mas também por ser mais utilizado nos demais períodos do dia.

A alteração nos modais

Um dos principais motivos pelo qual a redução dos espaços para carros ainda seja uma solução pouco aceita é o receio de que, retirando as infraestruturas, as pessoas deixariam de ser atraídas para a região, prejudicando a economia local. Faz-se então uma especial ressalva de que, como sua própria denominação revela, deseja-se eliminar os conflitos viários por meio da “evaporação” do tráfego e não das viagens.

A redução dos espaços para carros não deve ser unicamente resumida à retirada das infraestruturas. Muito pelo contrário, a recomendação é de que estas sejam remodeladas, destinando-as a modais com maior capacidade de transporte de pessoas. Desta maneira, além de serem bem menos onerosas, tais alterações permitem que os outros modais se tornem mais atrativos, seja o transporte coletivo, ao apresentar melhor pontualidade e maiores frequências, seja o transporte ativo (bicicletas e caminhadas) pelo aumento de segurança viária.

Um dos benefícios obtidos ao desestimular o uso do carro é justamente o aumento do potencial de uso dos espaços públicos na promoção de mobilidade urbana. Embora consuma mais combustível que um veículo de passeio, um ônibus tem uma capacidade de transporte muito maior que a de vários carros juntos, assim, além de gerar uma emissão de gases poluentes per capita mais baixa, também ocupa um espaço menor no sistema viário para transportar a mesma quantidade de pessoas.

Em cada figura, embora a mesma quantidade de pessoas esteja sendo transportada, verifica-se uma demanda diferente por espaço viário. Fonte: Adaptado de Gallo (2015)

Além disso, a redução de viagens de carro também implica na diminuição da demanda por vagas de estacionamento, contribuindo para gerar a sensação de “ruas mais vazias”, fluidas e confortáveis.

REFERÊNCIAS

CAIRNS, S.; ATKINS, S.; GOODWIN, P. Disappearing traffic? The story so far. Municipal Engineer, v. 151, n. 1, p. 13-22. mar. 2002. Disponível em: https://nacto.org/docs/usdg/disappearing_traffic_cairns.pdf. Acesso em: 10 jul. 2021.

GALLO, R. Experiência em SP mostra que carros usam 17 vezes mais espaço para levar mesmo número de gente que um ônibus. Folha de São Paulo. São Paulo, 24 jan. 2015. Disponível em: http://arte.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/01/24/sp-se-move/. Acesso em: 15 jul. 2021.

LEE, I. Cheong Gye Cheon Restoration Project: a revolution in Seoul. Seoul, 2006. Disponível em: https://seoulsolution.kr/sites/default/files/policy/%5BEN%5DCheong%20Gye%20Cheon%20Restoration%20Project.pdf. Acesso em: 15 jul. 2021.

KOREAPOST. [Fotografia] Rio Cheonggyecheon. 2016. Disponível em: https://www.koreapost.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Rio-Cheonggyecheon-Seul.jpg. Acesso em: 15 jul. 2021.

Guilherme Bublitz -Engenheiro Civil UFSCAR

Compartilhe:

Facebook
Twitter
LinkedIn